A FIXAÇÃO DAS CRENÇAS E SUA RELAÇÃO COM A VERDADE SEGUNDO
CHARLES S. PEIRCE.
Fred Carlos Trevisan1
1 INTRODUÇÃO
Um dos grandes questionamentos do ser humano é sem dúvidas sobre a
verdade, pois o ser humano precisa de certas verdades para progredir no domínio
do conhecimento.
A crença verdadeira é aquela que de alguma forma não poderia ser
melhorada, e que sempre resistiria ao desafios da argumentação e da
demonstração. A verdade é algo firme, não se alterando de pessoa para pessoa
ou mesmo de cultura para cultura. Peirce, afirma que há uma verdade para qual
nossos juízos, sejam eles morais ou não, podem almejar.
Nossas crenças orientam nossos desejos e, de certa forma, criam em nós
uma espécie de hábito, que por sua vez determinará nossas ações. Assim, uma
crença é a crença que melhor resistiria ao desafios da argumentação e da
demonstração ou, então, não é.
O trabalho que se segue é uma tentativa de compreensão e possível
analise acerca de um texto, muito consagrado, de C. S. Peirce, a saber, A
fixação das crenças.
2 A FIXAÇÃO DAS CRENÇAS E SUA RELAÇÃO COM A VERDADE
Em seu texto, A fixação da crença, Peirce começa por afirmar que a
capacidade de traçar inferências é mais uma arte resultante de um trabalho de
aprendizado, longo e difícil, do que um dom natural do homem. Esta capacidade
1 Mestrando em Filosofia da PUCSP e Professor da FAPI, FAEL, FACSUL, ESEEI e da Pós-Graduação das
Faculdades Bagozzi
de traçar inferências é a última das faculdades sobre a qual o homem adquire
amplo domínio.
Fundamentalmente somos animais lógicos, contudo não de maneira
perfeita. Do ponto de vista da lógica não se justifica, por exemplo, a confiança e a
esperança da maior parte dos brasileiros com relação ao futuro, no entanto,
parece que, quanto menos acontecimentos para atrapalhar, mais felizes ficam,
como se o efeito da experiência fosse o de escolher os desejos e expectativas.
"Ser lógico em relação a questões práticas (entendendo a expressão não em seu
vetusto sentido, mas como corresponde a sábia união da segurança com o
proveito do raciocínio) é o dom mais útil que um animal pode possuir, caberia,
pois, aceitar que decorresse do processo de seleção natural."
(PEIRCE,1988,p.177)2. E conclui Peirce dizendo que provavelmente é mais
vantajoso ter o espírito ocupado com visões agradáveis e estimulantes sem,
contudo ter o compromisso de serem elas verdadeiras.
Seja tendência de espírito constitucional ou adquirida é ela que nos
conduz, dadas certas premissas, a emitir esta ou aquela conclusão. E a tendência
de espírito será adequada ou não a partir de premissas verdadeiras. E assim "uma
inferência é tida por valida ou não independentemente de referência à verdade ou
falsidade da conclusão a que leva e apenas considerando ser a tendência que
determina essa conclusão tal que, em geral, conduz ou não a conclusões
verdadeiras". (PEIRCE, 1988,p.179). E o princípio orientador da inferência é uma
tendência de espírito que disciplina se esta ou aquela inferência pode ser
formulada por uma proposição cuja verdade depende, a principio, da validade das
inferências que a tendência determina.
2 O texto, "A fixação das crenças", utilizado se encontra em VERICAT, J. Charles S. Peirce. El hombre, um
signo (El pragmatismo de Peirce). Barcelona: Crítica, 1988. p. 175-199. A fixação das crenças,
correspondente a 1877, se publicou originalmente nos Popular Science Monthly. O texto se encontra em CP
5.358-387.
Ao se formular uma indagação lógica, muitos fatos já estão presumidos,
que existam estados de espírito, como o da dúvida e o da crença e que é plausível
permanecendo o mesmo objeto de pensamento, a transição de um para o outro,
estando sujeito a certas regras.
De qualquer forma, sabemos quando é do nosso desejo duvidar ou crer,
formular perguntas ou juízos, pois há diferenças entre a sensação de crer e a de
duvidar. Peirce distingue a dúvida da crença e aponta uma diferença prática:
"Nossas crenças orientam nossos desejos e dão contorno a nossas ações"
(PEIRCE,1988,p.182).
A crença, de certa forma, cria em nós uma espécie de hábito, que por sua
vez determinará nossas ações, "O sentimento de crença é indicação mais ou
menos segura de se ter estabelecido em nossa natureza um certo hábito que
determinará nossas ações".(PEIRCE,1988,p.182). A dúvida jamais acompanha tal
efeito.
A sensação de dúvida é um estado incômodo e desagradável, do qual
lutamos por libertar-nos. Buscamos chegar ao estado da crença, pois esta é um
estado de tranqüilidade e satisfação do qual não queremos sair, "A dúvida é um
estado de inquietude e insatisfação, do qual lutamos por libertar-nos e passar ao
estado de crença; este é um estado de tranqüilidade e satisfação que não
desejamos evitar ou transformar na crença em algo diverso"
(PEIRCE,1988,p.182). Se duvidássemos da segurança de nossa habitação, por
exemplo, acreditando que a qualquer momento ela pudesse desmoronar sobre
nós, viveríamos em um constante estado de incomodação. Contudo, buscamos
nos libertar desta incomodação e passar a um estado de tranqüilidade. Apegamo-
nos a crença de que nossa habitação é segura e mais ainda, agarramo-nos
persistentemente a crer na crença de que nossa habitação é segura.
A crença verdadeira é aquela a qual chegaríamos se inquiríssemos tanto
quanto pudéssemos sobre um determinado assunto. Segundo Peirce, "Quando
um homem deseja ardentemente conhecer a verdade, seu maior esforço será
imaginar que esta verdade pode existir" (PEIRCE,1997,p.48), assim, uma crença
verdadeira é uma crença que, de alguma maneira, não poderia ser melhorada,
não importando o quanto investigássemos e debatêssemos ela sempre se
contraporia aos desafios da razão e da argumentação.
Contudo, segundo Peirce, a dúvida e a crença têm sobre nós efeitos
positivos, porém muito diversos. A crença não nos leva a agir de imediato, mas
nos deixa em uma situação que, em determinada ocasião, nos comportaremos de
acordo com os padrões de nossa crença. A dúvida, contudo não tem esse efeito
ativo, assim estimula-nos a indagar até vê-la destruída.
A irritação da dúvida conduz a um esforço por atingir um estado de
crença "A irritação da dúvida é o único motivo imediato da luta por alcançar a
crença" (PEIRCE,1988,p.183). A esse esforço, Peirce, denominou investigação
embora ele admita que, por vezes, tal designação não se mostre muito adequada.
É muito conveniente serem nossas crenças tais que orientem
devidamente nossas ações, de maneira a satisfazer nossos desejos. Esta reflexão
nos conduzirá a rejeitar toda crença que não parece ter-se estruturado para
garantir este resultado. Segundo peirce, isto só acontece se uma dúvida substituir
a crença "Com a dúvida, a luta começa e tem fim quando cessa a dúvida."
(PEIRCE,1988,p.183).
Buscamos sempre uma crença que julgamos verdadeira. E julgamos que
são verdadeiras todas as nossas crenças. Assim sendo, o único objetivo da
investigação, de acordo com Peirce, é o acordo de opiniões.
Peirce alude, ao longo do texto quatro métodos de fixar as crenças, a
saber: o método da tenacidade, o método da autoridade, o método a priori e o
método científico.
Peirce, através de uma indagação, começa a esquadrinhar uma teoria
acerca de seu primeiro método de fixar as crenças. Esse método, foi
denominado de método da tenacidade "Se o acordo de opiniões é o objetivo único
da investigação e se a crença reveste a natureza de um hábito, por que não
atingiríamos o alvo desejado tomando a resposta a uma indagação qualquer,
repetindo-a constantemente a nossos próprios ouvidos, apegando-nos, com
desgosto e irritação, de tudo quanto possa perturbá-la?". (PEIRCE,1988,p.186).
A pessoa acredita que evitando a dúvida e agarrando-se tenazmente em
sua crença, esta o será por completo satisfatória."Não se pode negar que a fé
sólida e imutável proporciona grande paz mental".( PEIRCE,1988,p.186). Peirce
da o exemplo do avestruz que ao menor sinal de perigo enterra a cabeça na areia,
e dissimulando o perigo diz a si mesmo que o perigo não existe.
É muito provável que agindo dessa forma dê margem a incoerências,
Peirce da o exemplo de um homem que resolutamente acredita que o fogo não
queimará, se insistir em se aproximar demais do fogo, crendo ou não, esse lhe
trará certas inconveniências. Contudo lembra Peirce "Contudo, o homem que se
inclina por esse procedimento não permitirá que suas inconveniências superem as
vantagens." (PEIRCE,1988,p.186)
Sem dúvidas que este método de fixar a crença, a tenacidade, é o
caminho mais fácil, contudo será incapaz de sustentar-se na prática pois a
corrente social lhe é contrária "Brota de um impulso demasiadamente forte para
ser suprimido sem risco de destruição da espécie humana. A menos que nos
façamos eremitas, haverá necessariamente recíproca influência de opiniões; e,
dessa maneira, o problema se transforma no de saber como fixar a crença não
simplesmente no individuo, mas na comunidade." (PEIRCE,1988,p.187).
Em uma sociedade dividida, em lutas, subordinada uma hora por uns,
outra hora por outros, os homens perdem suas concepções de verdade e razão e
passam a trabalhar por todos os meios, ao seu alcance para silenciar seus
adversários, pois, para eles, a verdade é aquilo pela qual lutam. De acordo com
Peirce "O seguinte passo que se pode esperar em um desenvolvimento lógico não
interrompido por ocasiões incidentes consistirá em reconhecer que uma
autoridade central deve determinar as crenças da comunidade inteira. Até onde
chegam moral e religião, este plano chega admiravelmente seu propósito de
produzir uniformidade." (PEIRCE,1997,p.56), o método da autoridade, desde os
primórdios, um dos principais meios de sustentação de certas doutrinas teológicas
e políticas.
Apesar deste sistema dispor de procedimentos cruéis, devemos
reconhecer sua superioridade mental e intelectual sobre o método da tenacidade,
"Seu êxito é proporcionalmente maior; e, em verdade, ele tem, repetidamente,
produzido imponentes resultados." (PEIRCE,1988,p.189).
Não obstante os imponentes resultados, nenhum credo, ao longo do
tempo tem se mantido sempre idêntico a si mesmo. Entretanto a mudança é tão
lenta que se torna imperceptível ao longo de uma vida e por isso a crença
individual permanece fixa. Para a massa da humanidade este é, talvez, o melhor
método. Pois "o mais intenso impulso que experimentamos leva a serem escravos
intelectuais, escravos devem continuar". (PEIRCE,1988,p.189).
O método a priori, que segundo Peirce, não difere essencialmente do
método da autoridade, é o terceiro método de fixar as crenças.
Peirce afirma que, nenhuma instituição poderá regulamentar as opiniões
sobre todos os assuntos. De modo que só poderá regulamentar os de maior
importância, ficando os de menor importância à ação das causas naturais, isso
não é necessariamente uma fraqueza, não enquanto os homens se mantiverem
isolados de modo que as opiniões não se influenciem reciprocamente. Contudo, a
história tem demonstrado que até mesmo nos Estados onde acontece um maior
domínio clerical, existem sempre pessoas que conseguem ultrapassar esta
condição, "percebem que em outras regiões, e outras idades, os homens
cultivaram doutrinas muito diversas daquelas que eles foram ensinados a
professar" (PEIRCE,1988,p.189), e assim estes homens chegam a conclusão de
que foi mero acidente terem aprendido o que aprenderam e estarem rodeados de
certa cultura e de certos hábitos o que os levou a acreditarem no que acreditam.
E, desse modo, Peirce conclui que "a dúvida surge nos espíritos"
(PEIRCE,1988,p.189).
Com isso, a deliberada adesão a uma certa crença e sua imposição aos
demais deve ser dispensada. Então "Há de ser adotado um método diferente de
ajustar opiniões e ele deverá não só induzir a crer, mas permitir escolha da
proposição em que se deva crer." (PEIRCE,1988,p.191). Este método não oferece
obstáculos à ação das preferências naturais e que sob sua influencia os homens
possam desenvolver crenças que se harmonizem com as causas naturais. Este
método, em comparação com os anteriores, é considerado por Peirce muito mais
intelectual e, do ponto da razão muito mais respeitável também.
Por fim, Peirce atenta para a necessidade de que haja um método que
não seja determinado por algo humano, mas antes por algo externo e estável, e
assim que possa afetar todas as pessoas. Ainda que as maneiras de afetar sejam
completamente distintas do ponto de vista das condições individuais, o método
deve ser tal que as conclusões últimas de todas as pessoas sejam sempre as
mesmas.
O método ao qual Peirce se refere é o método científico, cuja hipótese
fundamental é de que existem Reais que independem de nossas opiniões a
respeito delas. E assim, esses "Reais afetam nossos sentidos segundo leis
regulares e conquanto nossas sensações sejam tão diversas quanto nossas
relações com os objetos, poderemos, valendo-nos das leis da percepção,
averiguar, através do raciocínio, como efetivamente as coisas são;"
(PEIRCE,1988,p.193), e toda pessoa, desde que possua experiência bastante e
raciocine suficientemente acerca do assunto, chegará a uma conclusão única e
Verdadeira. A concepção nova, que Peirce introduz, é a de Realidade.
Este é o único dos quatro métodos que distingue uma forma certa de uma
forma errada. Contudo não se deve supor que os outros três métodos não
possuam vantagens sobre o método científico, ou que o método científico seja a
solução definitiva. Pois, as pessoas que conhecem a ciência por seus resultados
são geralmente aptas por aceitar a noção de que todo o universo já está
totalmente explicado em suas partes principais, mas quanto a isso Peirce adverte
dizendo que "não obstante tudo o que se foi descoberto desde a época de
Newton, aquele dito de que somos crianças que recolhem formosas pedrinhas na
praia enquanto o oceano repousa em seu dorso inexplorado, segue sendo
substancialmente tão verdadeiro como sempre e o será ainda que recorramos as
formosas pedrinhas com espátulas mecânicas e as transportemos em furgões."
(PEIRCE,1997,p.75). Cada método a partir de suas especificidade possui certas
vantagens e o que importa é escolhermos e uma vez feita, a escolha nos obriga a
adesão "A força do hábito fará, muitas vezes, com que o homem mantenha velhas
crenças, mesmo depois de adquirir condição de perceber que elas são
desprovidas de base sólida".(PEIRCE,1988,p.195). Só a reflexão permitirá um
domínio sobre estes hábitos e o homem deve conceder para a reflexão o seu peso
total.
3 CONCLUSÃO
Peirce fala da necessidade de um método por força do qual nossas
crenças passem a ser determinadas por algo externo e estável, não por algo
humano, "por algo sobre a qual nossa reflexão não tenha efeito"
(PEIRCE,1988,p.193).
O método ao qual Peirce se refere é o método da ciência, cuja sua
hipótese é que existam coisas Reais, que independem de nossas opiniões a
respeito delas "Esses reais afetam nossos sentidos segundo leis regulares e
conquanto nossas sensações sejam tão diversas quanto nossas relações com os
objetos". (PEIRCE,1988,p.194). E assim, poderemos valendo-nos das leis da
percepção, averiguar como verdadeiramente as coisas são.
Em seu texto "A natureza da ciência", Peirce deixa claro que o que ele
entende por ciência é "a vida dedicada à busca da verdade de acordo com os
melhores métodos conhecidos por parte de um grupo de homens que se
entendem as idéias e os trabalhos uns dos outros como nenhum estranho pode
fazê-lo" (PEIRCE,1996,p.1437), e esta ciência da qual ele fala não são os estudos
solitários de um homem ilhado, mas antes "Só quando um grupo de homens, mais
ou menos em intercomunicação, se ajudam e se estimulam uns aos outros ao
compreender um conjunto particular de estudos como nenhum estranho pode
compreendê-los, chamo a sua vida ciência." (PEIRCE,1996,p.1437).
Muitas vezes, as pessoas se recusam a proceder assim tendo a idéia de
que as crenças constituem um todo que elas não podem imaginar que se apóie no
nada. E, sobre essas pessoas Peirce conclui dizendo que está "em lamentável
estado de espírito a pessoa que admite a existência de uma coisa chamada
verdade, distinta da falsidade simplesmente pelo fato de que, se agirmos fundados
nela, de olhos abertos, chegaremos ao ponto desejado e não nos perderemos e
que, não obstante convencida disso, ousa desconhecer a mesma verdade e busca
evitá-la" (PEIRCE,1988,p.196).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANUARIO FILOSOFICO. Navarra: UN, 1996.
PEIRCE, C. S. Escritos Filosóficos. Colegio de Michoacán: México, 1997.
VERICAT, J. Charles S. Peirce. El hombre, um signo (El pragmatismo de
Peirce). Barcelona: Crítica, 1988.
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